A discrepância entre o valor da causa e o valor concedido por danos morais nos JEC's
O texto a seguir foi escrito por Athos Damiani, Mariana Ferez, Julio Trecenti e eu e foi publicado na Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais e no portal da Associação Brasileira de Jurimetria. Com intuito de facilitar o seu acesso, reproduzo-o também a seguir.
O presente artigo visa estudar a relação entre o valor da causa em ações relativas a danos morais nos Juizados Especiais Cíveis (JEC’s) e o valor concedido em sentença. Em uma situação usual, os diferentes casos podem ser classificados em tipos ideais1 e, para cada tipo, os valores concedidos serão similares. Nessa situação, espera-se que o autor seja capaz de identificar a classificação de seu caso e, assim, peça um valor próximo àquele concedido em casos similares. Assim, na totalidade dos casos ajuizados para cada tipo, existirá correlação positiva entre o valor da causa e o valor concedido. Contudo, mostramos a seguir que esse padrão é quebrad nas ações por danos morais nos JEC’s. Nós exploramos algumas possibilidades para explicar essa quebra de expectativa e indicamos a necessidade da coleta de mais dados no futuro.
Para estudar o padrão mencionado acima, utilizamos dados recolhidos pelo IPEA. Este banco de dados contém informações sobre ações ajuizadas em JEC’s nas unidades federativas: AP, CE e RJ. Para cada auto analisado, obtivemos dados como: data de protocolo da petição inicial, data de baixa, tipo de dano provocado, matéria do litígio, valor da causa e valor da condenação. Por outro lado, não temos acesso a, por exemplo, identificadores dos processos ou ementas das decisões. Como nosso foco são os danos morais, selecionamos os autos em que o pedido foi exclusivamente devido a dano extrapatrimonial. Assim, obtivemos 384 autos.
Figura 1: Relação entre o valor da causa e o valor concedido
em casos de danos morais nos JEC’s.
A figura 1 ilustra a relação entre o valor da causa e o valor concedido nos autos sob análise. Em primeiro lugar, chamamos a atenção para a linha tracejada em verde. Esta representa os autos tais que o valor da causa é igual ao valor concedido. Assim, pontos abaixo ou acima da linha verde são aqueles autos tais que, respectivamente, o valor concedido é inferior ou superior2 ao valor da causa. Contrastando os pontos à linha verde observamos que o valor da causa é, em geral, uma ordem de grandeza superior ao valor concedido. Enquanto que os valores das causas concentram-se em torno de R$15.000, os valores concedidos concentram-se em torno de R$2.000. Em seguida, indicamos a linha vermelha. Esta linha aponta, para cada possível valor da causa, quanto se espera em média que seja o valor concedido. O fato de a linha vermelha ser praticamente horizontal confirma que, não importa qual seja o valor da causa, o valor concedido será, em média, o mesmo. Portanto, existe baixa correlação entre o valor da causa e o valor concedido. A seguir, apontamos duas linhas de interpretação independentes para explicar a discrepância entre o valor das causa e o valor concedido.
Como primeira interpretação, estudamos a determinação do valor da causa como um problema de decisão que é informado pelas normas processuais. Para tal, selecionamos artigos (transcritos no Apêndice) da Lei n\(^{o}\) 9.099/95, que rege o processo nos JEC’s. A análise conjunta dos dados e destes artigos possibilitam a seguinte conjectura: as normas processuais e a incerteza relativa à quantificação de danos morais são fatores que podem induzir o autor de litígio envolvendo danos morais no JEC a fixar o valor da causa como o máximo permitido por lei. Por um lado, a incerteza em relação à quantificação de danos morais e a nulidade de sentença ultra petita (art. 460 do CPC) induzem o autor a super-estimar o valor da causa. Caso contrário, o autor corre o risco de receber um valor inferior àquele que o juiz estaria disposto a conceder. Por outro lado, as custas processuais são função do valor da causa e influenciam na limitação deste. Assim, ao afastar as custas processuais da \(1^{a}\) instância dos JEC’s, o art. 55 da lei 9099/55 retira um dos fatores que coíbe o autor a super-estimar o valor da causa. A limitação efetiva3 aos valores das causas por danos morais nos JEC’s é dada pelos arts. \(3^{o}\) e \(9^{o}\), que fixam o teto de 20 ou 40 salários mínimos.
Figura 2: Valor pedido ao longo do tempo.
As linhas amarela e vermelha correspondem a 20 e 40 salários mínimos.
A figura 2 ilustra a relação entre os dados e a conjectura levantada. Cada ponto indica o valor da causa e a data do protocolo da petição inicial em um auto. As linhas amarela e vermelha indicam os valores ao longo do tempo correspondentes a, respectivamente, 20 e 40 salários mínimos. Observamos que, por exemplo, cerca de 50% dos autos teve valor da causa entre \(18\) e \(20\) ou \(38\) e \(40\) salários mínimos. Em outras palavras, verificamos empiricamente uma alta concentração de valores em torno dos máximos permitidos por lei.
Figura 3
Uma segunda interpretação atribui a discrepância entre o valor da causa e o valor concedido a uma divergência entre as expectativas sociais de compensação e os métodos de quantificação desta adotados pelos juízes. Segundo essa linha, a celeridade do rito do JEC ou ausência do requisito de ser representado por advogado pode incentivar a vítima a ajuizar a ação no JEC ao invés da Justiça comum. Assim, ainda que a vítima avalie o valor de sua causa como superior ao máximo permitido no JEC, pode adotar este valor. Assim, há uma explicação alternativa para a incidência elevada de causas com valores próximos ao máximo fixado por lei. Por outro lado, a figura 3 ilustra a frequência com que diferentes valores são pedidos ou concedidos em casos em que houve ao menos procedência parcial. Observamos que a variação dos valores concedidos é menor do que aquela dos valores das causas. Ainda que exista incerteza em relação aos critérios usados para a quantificação dos danos morais, essa incerteza não se reflete em alta variabilidade dos valores concedidos pelos magistrados. Essa chave de leitura ressalta a pergunta: se o banco de dados contém variados tipos de casos, como explicar o fato de os magistrados invariavelmente concederem valores próximos a R$2.000? Quais critérios são utilizados para a quantificação?
Pesquisas Futuras
Em toda pesquisa empírica, respondemos algumas poucas perguntas e levantamos várias outras. No nosso breve estudo, foi possível investigar algumas questões sobre os processos de dano moral dentro dos JEC’s, principalmente no que diz respeito da relação entre o valor da causa e o valor concedido. No entanto, várias perguntas relevantes não foram respondidas. A seguir, indicamos duas dessas perguntas. Os leitores também estão convidados a sugerir outros tópicos:
O dilema da decisão de entrar no JEC ou na Justiça Comum. A facilidade de litigar nos JECs e a inexistência de aspectos inibitórios para escolher o valor da causa nos faz questionar se existem casos em que o autor escolhe ``reduzir’’ o valor da sua causa apenas para poder ajuizar a ação no JEC. Para estudar esse fenômeno, seria interessante verificar: i) qual é a taxa de procedência de processos nos JECs e na Justiça Comum; ii) qual é a relação entre valor pedido e valor concedido na Justiça Comum; e iii) vantagens e desvantagens de entrar na Justiça comum, como tempo de tramitação do processo, custas processuais, sucumbência, etc No entanto, para tornar uma pesquisa desse tipo possível, precisaríamos de informações de processos que não vão para os JECs, sendo necessário também o desenvolvimento de alguma metodologia para comparação adequada dos litígios.
Existe uma “indústria do dano moral”? Ainda que a discrepância entre o valor da causa e o valor concedido não provem a existência da “indústria do dano moral”, podem explicar a percepção intuitiva de que existe algo “errado” com esse tipo de caso. De fato, os valores das causas apresentam uma alta variabilidade. Contudo, é interessante observar que, ainda que a doutrina frequentemente indique a falta de critérios para a quantificação de danos morais como motivo para insegurança jurídica ligada a esse fato, essa consequência não foi verificada empiricamente. De fato, os valores concedidos pelos magistrados concentram-se em torno de R$2.000 e têm baixa variabilidade. Contudo, essas observações não são suficientes para aceitar ou refutar a tese da “indústria do dano moral”. Uma das definições de “indústria do dano moral” indica que a taxa de judicialização (a proporção de conflitos de um tipo que se tornam litígios) é maior para danos morais do que para outros tipos. A taxa de judicialização não é diretamente observável, e para estimá-la precisaríamos modelar a estrutura do litígio e a decisão de litigar. Uma alternativa para isso seria a utilização de diagramas de influência, que é uma forma de estruturar dependências probabilísticas em problemas de decisão de forma intuitiva, através de um grafo.
Reprodução da Análise
Para os interessados em reproduzir nossa análise, segue neste link o código escrito na linguagem \(R\) que a gerou. Esperamos que este breve estudo possa trazer mais material relevante na discussão do tema de danos morais, principalmente dentro dos Juizados Especiais Cíveis.
Apêndice
Lei n\(^{o}\) 9.099/95
- Art.3\(^{o}\). O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo; ()
- Art.9\(^{o}\). Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.
- Art.55. A sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará as custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.
Ainda que todos os casos sejam diferentes, eles podem ser agrupados em categorias que compartilham muitos fatos relevantes. Por exemplo, os casos em que a vítima tem seu nome inadequadamente inscrito em uma lista de proteção ao crédito são mais semelhantes entre si do que aos casos em que vítima foi privada do serviço de água. Simplificadamente, são as categoria que resumem os fatos relevantes dos casos que chamamos de tipos ideais.↩︎
ainda que a decisão ultra petita seja nula, existem quatro pontos tais que o valor concedido é superior ao valor da causa. Dado que não temos acesso ao número dos processos ou texto das decisões, não fomos capazes de confirmar se esses pontos realmente representam decisões ultra petita ou se são provindos de erros de transcrição para o banco de dados.↩︎
Podemos estudar a determinação do valor da causa como um problema de Teoria da Decisão em que o autor busca maximizar seu lucro esperado. Para tal, considere que \(Y \sim \text{Bernoulli}(p)\) assume valor \(1\) se e somente se a ação é ao menos parcialmente procedente. Considere que \(X\) é o maior valor que o magistrado estaria disposto a conceder quando \(Y=1\). Finalmente, considere que a taxa judiciária é fixada em \(t\) do valor da causa. Nesse caso, se o autor pede o valor \(d\), seu lucro é dado por \(L(d) = Y \cdot \min(X,d) - (1-Y)(t \cdot d)\). Nesse caso, o lucro esperado do autor é dado por \[E[L(d)] =p \cdot \left(\int_{0}^{d}{x dP_{X}(x)} + d \cdot P(X > d)\right) - (1-p)(t \cdot d)\] Observe que \(\frac{\delta E[L(d)]}{\delta d} = p P(X > d) - t(1-p)\) e \(\frac{\delta^{2} E[L(d)]}{\delta d^{2}} = -pf_{X}(d) \leq 0\). Portanto, o lucro esperado é maximizado tomando-se \(d\) como o mínimo entre o \(1-\frac{t(1-p)}{p}\) percentil de \(X\) e o máximo permitido por lei. Em particular, quando \(t = 0\), o lucro esperado é maximizado tomando-se como o pedido o maior valor permitido por lei. A relação encontrada entre o valor da causa e a taxa judiciária explica que até mesmo pequenas variações no valor da taxa podem influenciar drasticamente o comportamento do autor. Por exemplo, o autor pode estimar o maior valor que o juiz estaria disposto a conceder em seu caso com base na distribuição de valores concedidos nos casos anteriormente decididos nos JEC’s. Por exemplo, considere que o autor acredita que a probabilidade de procedência de sua ação é 50%. Caso a taxa judiciária seja fixada em 1% do valor da causa, a decisão ótima do autor é fixar o valor da causa em R$10.000. A diferença entre a inexistência de taxa judiciária e a sua fixação em 1% do valor da causa altera a decisão ótima em mais de R$10.000.↩︎